A discussão sobre o regime de tributação dos serviços notariais e de registro ganhou relevo após a promulgação da Lei Complementar 116/2003, que regulamentou o artigo 156, inciso III da Constituição Federal, que refere ao Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios, que incluiu atividade cartorária[1] como passível da exação.
O debate, no momento inicial, fora no sentido de se considerar inconstitucional a tributação desta atividade, notadamente porque os serviços prestados nas serventias possuem natureza eminente pública, daí porque se estaria diante do fenômeno da imunidade.
Todavia, a tese vencedora fora a capitaneada pelo Fisco municipal, consagrada no improvimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3089, quando o Supremo Tribunal Federal se pronunciou favorável à legalidade do tributo, ao argumento em que as pessoas que exercem atividade cartorária não são imunes à tributação, porquanto a circunstância de desenvolverem os respectivos serviços, com intuito lucrativo, invoca a exceção prevista no artigo 150, parágrafo 3º da Constituição.
Derrotados no primeiro round, os delegatários foram acossados no segundo, quando receberam avassaladores golpes deferidos pelos municípios, que com afã arrecadatório, empreenderam diligência para receber o tributo, porém o fizeram da forma mais gravosa à atividade.
Por evidente, os titulares dos serviços não concordando com o rigor do exigido, passaram se esquivar dos golpes sustentando que cobrança do Imposto Sobre Serviços deveria ser por preço fixo, típica dos serviços de natureza pessoal e não calculado sobre a receita bruta, como ocorre na atividade empresarial.
Malgrado a coesa e verossímil argumentação dos notários e registradores, no sentido de ser aplicado o preço fixo preconizado no Decreto-Lei 406/68, ao que perece, mais uma vez os municípios levarão vantagem, pois o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem sedimentando o entendimento que o exercício da atividade se assemelha à empresarial, daí se justifica aplicação integral das alíquotas e base de cálculo legisladas na Lei Complementar. 116/2003.
Portanto, o nó górdio da discussão que ocupa delegatários é a demonstração de que o regime da tributação pessoal é que deve prevalecer.
O presente trabalho tem o escopo de discorrer não sobre o regime tributário prevalente, mas em arguir qual seria o melhor: o encampado pelos cartorários, pautado na pessoalidade ou o afirmado pelos Municípios, que se assemelharia a atividade empresária?
Regimes tributários
Para custear a consecução do bem comum, o Estado necessita obter receitas e o faz de duas formas: originariamente, quando explora o seu próprio patrimônio, sem nada impor, numa relação negocial ou derivadamente, em que age impositivamente, editando leis para que os particulares, independente de sua vontade, entreguem valores, isto é, parte do patrimônio é compulsoriamente tributada.
A Constituição Federal elencou determinadas situações fáticas ou expressões econômicas que, se vierem à existência, ensejarão no dever legal de pagar tributos. Contudo, coube ao legislador infraconstitucional estabelecer contornos de como seria a cobrança das exações. Então, dentro dessa sistemática, numa definição simplória, temos que as diferentes formas de apuração do imposto devido, denomina-se regime tributário.
As nuanças da tributação de pessoas físicas são menos acentuadas. Assim, por exemplo, a depender da atividade desenvolvida pelo contribuinte do Imposto de Renda o mesmo deverá lavrar livro caixa, efetuar pagamentos mensais, ou então, já tem o imposto retido na fonte, mas de toda forma, as alíquotas são as mesmas no regime.
Já no caso da jurídica, a escolha do regime tributário é parte imprescindível para a sobrevivência da própria empresa, pois os valores, forma de apuração e alíquotas, variam consideravelmente a depender do regimento.
No Brasil, atualmente, os regimes tributários mais utilizados para as empresas, nos quais podem se enquadrar de acordo com as atividades desenvolvidas são: a) Simples Nacional; b) Lucro Presumido; c) Lucro Real.
Regime tributário dos serviços notariais e registrais
A função notarial e registral tem fundamento na própria Constituição Federal, em seu artigo 236. Desse fundamento emerge que a natureza jurídica da atividade, é um mix entre o exercício privado de uma atividade que embora pertença ao poder público é delegada.
Essa dicotomia entre público e privado levou o STF a se pronunciar sobre a natureza jurídica da atividade, que na Ação Direita de Inconstitucionalidade 2.602, ressaltou o caráter estatal, temperado pelos contornos privados. Também na ADI 3.151, entendeu que há uma excepcionalidade, uma delegação sui generis, concedida somente a pessoa natural, por habilitação em concurso público de provas e títulos.
Por isso, a jurisprudência e a doutrina são uníssonas em afirmar que a personalidade do serviço, assim mesmo com o auxílio de colaboradores e vários outros elementos de empresa, é indubitavelmente pessoal.
Assim, em razão da coerência do sistema jurídico, deveria ser esse o entendimento adotado pelo STJ, no que tange ao ISS, isto é, levar em consideração a pessoalidade de prestação.
Conforme já dito alhures, parece não ser esse o caminho a ser trilhado. Se isso acontecer, isto é, se os tribunais superiores mantiverem o atual entendimento, teremos uma esdrúxula diferenciação de regimes tributários, que variarão ao sabor da exigência do Fisco: para União, pessoalidade e para os municípios, atividade econômica.
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE INGRESSO COMO ASSISTENTE SIMPLES. CARACTERIZADO O INTERESSE JURÍDICO. PREQUESTIONAMENTO DE DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. IMPOSSIBILIDADE. ISS. ATIVIDADE NOTARIAL E DE REGISTRO PÚBLICO. REGIME DE TRIBUTAÇÃO FIXA. ART. 9º, § 1º, DO DECRETO-LEI 406/68. NÃO CABIMENTO. ATIVIDADE EMPRESARIAL. PRECEDENTES.
- Não se aplica à atividade notarial e de registros públicos a sistemática de recolhimento de ISS prevista no art. 9º, § 1º, do Decreto-Lei n. 406/68, porquanto tal benefício só se aplica aos casos em que há prestação de serviço especializado, com responsabilidade pessoal e sem caráter empresarial. No caso dos serviços em questão, há nítido caráter empresarial. [2]
Entretanto, embora a decisão afronte a literalidade da lei e essência da atividade, nela enxergamos pontos positivos, pois tendo-a como referência, pode haver uma mudança paradigmática no regime de tributação, que julgamos mais benéfica para atividade.
Advogamos a tese que a divergência de regimes tributários criado pelo STJ pode ser favorável ao contribuinte delegatário, desde que, também, extensível aos demais tributos. Isso porque do ponto de vista fiscal é mais interessante o serviço ser tributado como atividade empresária do que como prestador físico.
O que não é crivo e nem razoável é o paradoxo de regimes, em se tributar o Imposto de Renda como pessoa física e o ISS como atividade empresária. A Corte Superior deve eleger um único no tocante à integralidade das obrigações tributárias e para nós, no grosso das situações, esse último é mais favorável aos cartorários, conforme contabilmente demonstraremos a seguir.
Apesar da carga tributária no Brasil em si ser bastante densa, auferindo-se contabilmente, a tributação das empresas, na maioria das vezes, se mostra mais favorável do que a do contribuinte individualmente considerado. Talvez em razão da função social da empresa, em que o detentor da competência tributária deve ser mais sensível com os núcleos de produção de riqueza, pois do contrário pode haver desestimulo a atividade econômica.
Desta forma, no caso dos notários e registradores, em essência, o problema não é a tributação pela receita bruta do ISS, mas a não aplicação dos mesmos critérios para os demais tributos, o que faz com que tenham que suportar o pesado cargo do imposto de renda.
Vamos imaginar, hipoteticamente, um delegatório que tenha uma serventia que ingresse mensalmente a títulos de emolumentos o valor de R$ 10 mil, tendo um único funcionário remunerado com base no mínimo legal, guardada as devidas proporções à tributação seria a seguinte:
Pessoa Física
Pessoa Física | |
R$ 10.000,00 (receita) | Despesas dedutíveis |
R$ 200 a R$ 500 (ISSQN)* | |
R$ 678,00 (salário mínimo) | |
R$ 235,94 (encargos de folha)** | |
R$ 8.886,06 (base cálculo IRPF) | |
R$ 1.653,09 (Imposto de Renda) | |
Total Impostos | |
R$ 2.089,03 a R$ 2.359,09*** | |
* ISSQN levando em consideração o entendimento do STJ que se aplica alíquota sobre o faturamento bruto. Alíquota varia de 2% a 5% a depender da regulamentação do Município./ **INSS do empregador + FGTS + Contribuições Sociais. / ***Valor a depender da alíquota do ISSQN. |
Lucro Presumido
Lucro Presumido | |
R$ 10.000,00 (receita) | |
R$ 200 a R$ 500 (ISSQN)* | |
R$ 678,00 (salário mínimo) | |
R$ 235,94 (encargos de folha)** | |
R$ 120,00 (Imposto de Renda) | |
R$ 108,00 (CSLL) | |
R$ 65,00 (PIS) | |
R$ 300,00 (COFINS) | |
Total Impostos | |
R$ 1.028,94 a R$ 1.328,94*** | |
* ISSQN levando em consideração o entendimento do STJ que se aplica alíquota sobre o faturamento bruto. Alíquota varia de 2% a 5% a depender da regulamentação do Município./ **INSS do empregador + FGTS + Contribuições Sociais. / ***Valor a depender da alíquota do ISSQN. |
Simples
Simples | |
R$ 10.000,00 (receita) | |
R$ 600 (DAS)* | |
R$ 678,00 (salário mínimo) | |
R$ 235,94 (encargos de folha)** | |
Total Impostos | |
R$ 835,94 | |
* Documento de Arrecadação unificado em que todos os tributos, inclusive o ISS é pago mediante aplicação de única guia. **INSS do empregador + FGTS + Contribuições Sociais. |
É claro que, de acordo com a legislação do Imposto de Renda, no caso das pessoas físicas, outras despesas também são dedutíveis, todavia, a alíquota do imposto crescerá progressivamente (chegando a 27,5%), e os gastos ficarão limitados. Assim, quanto maior a receita diretamente proporcional será a mordida do Leão.
Salvo pouquíssimas exceções, notadamente em cartórios com baixíssimos rendimentos, a tributação pelo lucro presumido torna-se mais atraente, uma vez que sequer inexiste a possibilidade de glosa de despesas. Ora, é sabido que a Receita Federal do Brasil não aceita todas as despesas como dedutíveis. Além do mais, embora incida outras contribuições, como o CSLL, PIS e COFINS, as alíquotas em conjunto, ainda são menores do que a do imposto de renda da pessoa física.
Todavia, o melhor dos mundos é sem sobra de dúvida a migração para o Simples, que é um regime compartilhado de arrecadação, cobrança e fiscalização de tributos, previsto na Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.
Serviços notariais e registrais como empresa
A toda evidência, emerge do regramento vigente que a atividade cartorária é marcada pelo traço de pessoalidade. Porém, entendemos que há possibilidade jurídica da mutação do regime.
Não há como negar que hoje os cartórios já não são mais identificados na pessoa do titular que o administra, mas há situações que são verdadeiros complexos organizados para circulação de serviços, presente elementos de empresa, mormente a profissão seja eminentemente intelectual, encaixando-se como uma luva na definição de empresário do artigo 966 do Código Civil.
Há serviços notariais e registrais que de tão bem administrados se assemelham as grandes corporações, onde os usuários são prontamente atendidos por colaboradores qualificados, em que a parte prescinde da presença do tabelião ou registrador. Como observam Kellen Medeiros Bagatin e Armando Dallas Costa( ):
“a razão de ser do notariado e dos registros públicos largamente vislumbrados nos dias atuais, em consequência das exigências sociais com o crescimento populacional, a expansão das atividades comerciais e a complexidade engendrada nos avanços tecnológicos e sociais que ensejam a todo instante adaptações nas práticas de realização de negócios”. [3]
O fato é que hoje os serviços notarias e registrais só fogem ao conceito de empresa por nítida opção do legislador, todavia, essa vontade já não repercute a realidade da atividade.
Pontua-se que não estão estamos pleiteando a recategorização do exercício da atividade de pessoa jurídica para jurídica. Por evidente, tal proposta seria flagrantemente inconstitucional, uma vez que o artigo 236 da Constituição outorga a delegação a uma pessoa física.
Na verdade, advogamos que o regime jurídico tributário dos cartórios é mais penoso do que dado a uma empresa. Quando na verdade, os delegatários, exercem hoje o seu múnus profissionalmente e de forma organizada.
É verdade que muitos cartórios de tão diminutos ainda são regidos com fortes contornos da pessoalidade. Contudo, não há nenhum óbice para que por ficção legal eles também sejam considerados como empresários, é claro, desde que mais vantajoso o regime. Porém, o que hoje é exceção (pessoalidade) não pode segurar as vantagens da regra (atividade empresária).
O nosso desiderato é que aos cartórios seja deferido o mesmo tratamento dado a um empresário individual no tocante aos encargos tributários. Para tanto, em nome do princípio da legalidade, careceria de uma pontual reforma legislativa.
Conclusão
Formalmente, na concepção literal dos textos legais, a pessoalidade é o elemento caracterizador da atividade notarial e registral. Entretanto, pensamos que talvez fosse interessante que comunidade cartorária, aproveitando a oportunidade que o STJ, indevidamente, criou uma dualidade de regimes para beneficiar os Municípios, começasse a discutir a mudança do regime tributário.
É absurdo ter diferentes regimes tributários para situações jurídicas idênticas, mas como demonstrado acima, imaginamos que o exercício de empresa é mais simpático aos cartorários, pelo menos no que concerne ao aspecto tributário.
Destarte, mesmo não concordando com o STJ em razão da pluralidade de regimes, defendemos a migração para o empresarial, pois arrimado na frieza dos números, acreditamos que é o que mais coaduna com a atual realidade da atividade.
Referências
BAGATIN, KellenMedeios e COSTA, Armando Dalla. Cartórios como Empresas de Serviço Público Ocupadas Via Concurso. Revista Organização Sistêmica, v. 2. n. 1, jul. dez 2012, p. 82 a 101.
BRITO, Hugo Machado de. Consulta da Anoreg — Associação dos Notários e Registradores do Brasil — sobre o regime jurídico do ISSQN incidente sobre os serviços notariais, cartorários e de público. Acesso: 13.09.2013. www.anoreg.org.br/index.php?option=com
[1] Lembramos que no Direito brasileiro é tecnicamente incorreto designar os serviços notariais e registrais como cartório, entretanto, em razão da habitualidade e para fins didático usaremos indistintamente os termos como sinônimos.
[2] AgRg no AgRg no AREsp 268238 / SP no Resp. 2012/0258668-2. Min. HUMBERTO MARTINS (1130). 2ª Turma. DJe 24/05/2013.
[3] Cartórios como Empresas de Serviço Público Ocupadas Via Concurso. Revista Organização Sistêmica, vol. 2. Nº 1, jul. dez 2012, p. 98
Publicado na Revista Consultor Jurídico – CONJUR