Em 17 de setembro de 2019
- INTRODUÇÃO
A Lei nº 13.838, de 04 de junho de 2019, com um simples acréscimo do §13º ao art. 176 da Lei dos Registros Públicos, poderá suscitar hercúleos debates de interesses econômicos e jurídicos.
É que o encimado dispositivo foi conjecturado com o objetivo de dispensar anuência dos confrontantes, quando da averbação do georreferenciamento na matrícula do imóvel, bastando para tanto apenas declaração do interessado que respeitou os limites.
É evidente que a medida tem um auspicioso desiderato de simplificar o procedimento do levantamento geodésico, minimizar os custos empreendidos na localização dos confrontantes e, nas palavras do relator do projeto, Senador Antônio Anastasia, suprimir uma lacuna legislativa que, para ele, em momento algum, nenhum diploma exigia a aquiescência dos titulares lindeiros.¹
Em acréscimo, também se pode advogar em favor do novo texto legal, que a dispensa se coaduna com a boa-fé, princípio em voga e que deve permear todas as relações procedimentais, inclusive administrativas como é a retificação do georreferenciamento. Com efeito, a simplificação dos processos é indubitavelmente um anseio coletivo, tônica do atual governo, que através da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, cujo principal mote é envidar esforços para se ultimar a desburocratização. No entanto, quando em trâmite na Câmara dos Deputados, o projeto foi questionado por alguns, que defendiam a manutenção da carta de anuência de vizinhos, sobretudo, em razão da “caótica estrutura fundiária brasileira”, como ressaltou o deputado Padre João (PT-MG), com superposição de títulos de terra. O receio é que o fim da carta de anuência permita avanços sobre terras públicas e áreas reservadas para populações
tradicionais, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos.²
Além disso, também se argumentou que, embora o objetivo fosse a desburocratização, o projeto teria efeito revesso à medida que pode se aumentar a judicialização. Hoje, o procedimento que tem tido êxito no âmbito administrativo é pouco migrado para o judiciário, mas em razão da flexibilização, poderá suscitar potenciais conflitos a serem solucionados judicialmente.
Para além das discussões quanto à conveniência política da mudança legislativa, indagamos se o “novel” diploma por si só possui condições de inovar no ordenamento e permitir a retificação tabular quando em procedimento de georreferenciamento, prescindindo da concordância dos confrontantes?
Isso porque há uma substancial diferença entre o procedimento de certificação do georreferenciamento (art. 176, §§ 3º usque 13º da Lei dos Registros Públicos – LRP) e a consequente averbação na matrícula, em relação ao procedimento de retificação (arts. 213 e 214 da LRP).
Foi com o advento da Lei Federal nº 10.267, publicada no D.O.U em 29.08.2001, que passou a vincular à necessidade de descrição georreferencial dos imóveis rurais, ao alterar a Lei nº 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos – LRP), acrescendo os parágrafos 3º e 4º ao artigo 176, como também o artigo 225 ao incluir o parágrafo 3º.
Com o acréscimo dessas disposições, tornou-se obrigatória a identificação da propriedade rural a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro (SBG) e com precisão posicional fixada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), pelo menos de início nas hipóteses de desmembramento, parcelamento e remembramento de imóveis rurais (§3º do artigo 176 da LRP), transferência de imóvel rural (§ 4º do artigo 176 da LRP) e, também, autos judiciais que versem sobre imóveis rurais (§ 3º, do artigo 225 da LRP).
O levantamento geodésico fora uma revolução no quesito segurança jurídica e controle ambiental que, com base nas informações obtidas calcadas em modelos matemáticos e uma métrica cientifica e confiável, pôde-se identificar individualmente as propriedades, coibir fraudes, grilagens, sobreposições de imóveis e ter um cadastro mais fidedigno dos imóveis rurais brasileiros.³
Nunca se questionou o modelo ou a exigência da obrigatoriedade do georreferenciamento, mas sua instrumentalização, pois a primeira critica viera com Decreto nº 4.449/02, que trouxe os prazos e modo de operacionalização da certificação. O setor produtivo alegava que os prazos eram extremamente exíguos, custos elevados na implementalização e, mesmo quando concluído o levantamento, o INCRA não detinha de aparato tecnológico e capital humano capaz de atender uma demanda mínima.
A título de exemplo, quem porventura fosse proprietário de imóvel rural com área igual ou superior a 5.000ha, deveria ultimar a identificação do imóvel, de acordo com o Decreto, em noventa dias, isto é, até o final de janeiro de 2003. Ocorre que a identificação era impossível, haja vista o INCRA sequer ter definido os vértices geodésicos, ou seja, não havia parâmetros do sistema instituído pela Lei.
Mais adiante, o Decreto nº 5.570/2005, estabeleceu novos prazos, contudo, ainda persistiu a morosidade na certificação pelo INCRA. Até que, felizmente, recentemente, de forma exitosa, fora criado o Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) desenvolvido para gerir todas as informações fundiárias do meio rural brasileiro. Na verdade, o SIGEF é uma ferramenta eletrônica efetuada a recepção, validação, organização, regularização e disponibilização das informações georreferenciadas de limites de imóveis rurais, desenvolvida pelo INCRA e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para subsidiar a governança fundiária do território nacional.⁴
Com o sistema, a certificação passou a ser automática em não havendo oposição ou sobreposição de nenhuma área. O técnico credenciado lança as coordenadas no sistema e caso tal perímetro não tenha sido certificado por outrem, resta concluído, estando pendente apenas de confirmação no cartório.
Antes do SIGEF, as normas técnicas do INCRA exigiam a anuência dos confrontantes, além de declaração do proprietário e técnico que os limites da propriedade foram respeitados. Contudo, após o SIGEF, o INCRA deixou de exigir formalmente as cartas de confrontação, visto que, o procedimento passou a ser apenas de inserção de coordenadas e tacitamente legou aos oficiais de registro a necessidade de averiguar quanto a não oposição por parte dos vizinhos.
Ocorre que, pela letra fria da lei, em razão do levantamento geodésico há alteração perimetral do imóvel, que por força do art. 213, II, da LRP, ainda que não resulte alteração da área, deve ser objeto de retificação da matrícula, a requerimento do proprietário, cujo procedimento deve ser instruído com planta e memorial com prova de anotação de responsabilidade técnica no competente Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), bem assim pelos confrontantes.
Ora, a Lei nº 10.267/2001, que instituiu a obrigatoriedade do georreferenciamento é anterior à Lei nº 10.931/2004, que cuidou de alterar o procedimento de retificação da matrícula. Desta forma, resta evidente que na exegese pautada na especialidade e temporalidade, o procedimento retificatório deve englobar qualquer alteração perimetral, mesmo que relativo à certificação. Principalmente após a implementação do SIGEF, que como dito alhures, transmitiu aos oficiais a obrigatoriedade de recepcionar os trabalhos técnicos e averiguar a não oposição.
Então, a mens legis da Lei nº 13.838/19 foi claro em se permitir a dispensa de anuência dos confrontantes na averbação do georreferenciamento de imóvel rural, inclusive tendo sido essa sua ementa: “Altera a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), para dispensar a anuência dos confrontantes na averbação do georreferenciamento de imóvel rural”.
Todavia, a simples inserção do §13º ao art. 176, não fora suficiente para alterar o sistema como um todo. É que, os procedimentos de retificação previstos nos arts. 212 e 213, também da LRP, permaneceram incólumes e por conta disso, a novidade legislativa não alcançou o fim desejado.
Não se trata de mero preciosismo e, sim, subsunção ao regramento legal que, como é sabido, é tônica dos registros públicos, uma observância irrestrita a legalidade, visto que, quando em qualificação registral ao oficial de registro é defeso inovar ou destoar do texto legal.
Ora, como dito a exaustão, uma coisa é a certificação feita pelo INCRA, outra coisa é a retificação tabular. Para certificação é crivo não mais se exigir a anuência dos confrontantes, até porque conforme inteligência do §2º, do Decreto nº 4.449/02, a certificação não traz certeza de propriedade nem mesmo perante o INCRA. É que mesmo quando aprovada, a certificação não implicará reconhecimento do domínio ou a exatidão dos limites e confrontações indicados pelo proprietário. Ou seja, é passível se questionar, sobretudo agora que se dispensa a vênia do limítrofe.
Já a informação do fólio real implica em uma presunção de veracidade, cuja alteração não deve se consumar sem um procedimento mínimo, em que se possibilite uma publicidade registral e um eventual contencioso administrativo. É que, por força do art. 1.246, §2º, do Código Civil, a verdade emanante do registro é eficaz e oponível a todos até que haja a sua invalidade. Permitir retificações perimetrais, ainda que resultando do levantamento geodésico, sem um procedimento asseguratório aos confrontantes, pode resultar em prejuízos para o sistema, sobretudo, no que diz respeito à segurança jurídica.
Além do mais, em que pese as críticas em contrário, a praxe registral tem demonstrado que o procedimento tem sido satisfatório, à medida que poucas sãos as ações discutindo os limites, quando regularmente concluído o procedimento. É que para o confrontante, se facultada à oportunidade do contraditório e para o proprietário, há possibilidade de conclusão do procedimento com a anuência tácita ou quando há abuso de direito do lindeiro.
Diante disso, com as devidas vênias, sustentamos que o acréscimo do dispositivo não fora o suficiente para alterar a sistemática da retificação.
Porém, considerando a função social da norma e, o desiderato do legislador, que como representante do povo, quis promover uma nova regulamentação, sustentamos que é possível se construir uma solução conciliatória, quiçá salomônica, se permitindo as retificações sem anuência, em alguns casos, a depender o nível da descrição do imóvel.
O grau de irregularidade da descrição perimetral nas matrículas de imóveis rurais tem diversos níveis, existindo imóveis com descrições precárias, incompletas e/ou imprecisas, ao passo que, outros imóveis apenas necessitam de indicação de rumos, ângulos de deflexão ou inserção de coordenadas georreferenciadas. ⁵
Assim, nas hipóteses em que não haja inserção ou alteração das medidas perimetrais já lançadas na matrícula, mas tão somente a inserção de coordenadas georreferenciadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, ou que a alteração seja ínfima e se possa inferir com base nas informações anteriormente insertos no registro que não há prejuízo para terceiros, nesses casos, o ato de retificação poderia ser praticado com a dispensa da anuência dos confinantes, sendo suficiente a declaração do requerente de que respeitou os limites e as confrontações, conforme previsto nos §13º do art. 176 c/c art. 213, I, “d” da LRP.
No entanto, no caso da precariedade da descrição tabular, quando houver fundada dúvida ou alteração substancial da área ou da descrição perimetral, deve continuar a exigência dos confrontantes, na forma do art. 213, II da LRP.
De toda sorte, ainda que a tese prevalente seja da desnecessidade de anuência para a retificação, os proprietários, técnicos e oficiais de imóveis devem convergir esforços para garantir a segurança jurídica, uma vez que, o objetivo do mapeamento, via sistema geodésico, é justamente imprimir um novo verniz de segurança a malha fundiária do Brasil.
¹ Parecer pela constitucionalidade. PL 120/2017. Senado Federal, Brasil.
² COSTA, Nara. Projeto dispensa Carta de Anuência dos Confrontantes em Georreferenciamento. Projeto GEODUC. Acessado em: http://geoeduc.com/blog/projeto-dispensa-carta-de-anuencia/
³ Em outro artigo pontuamos: “Pois não podemos nos olvidar que o fato gerador que culminou com a legisferação da Lei 10.267/01, fora a necessidade crescente de se dinamizar a questão fundiária no Brasil. É que esse imenso território traz, desde épocas primevas, crônicos problemas no que tange à divisão e demarcação de terras. Há registros históricos que remonta essa discussão ao Brasil Colonial, ainda sob a égide das capitanias hereditárias e mesmo vencidos séculos esses problemas subsistem em todo seu vigor”. SANTOS, Marcos Alberto Pereira. A exigibilidade indevida da certificação pelo Incra. Diário das Leis. BDI, 23, Ano 2009.
⁴ Apresentação do SIGEF. https://sigef.incra.gov.br/sobre/apresentacao/
⁵ Nota Técnica nº 1º/2019, em 06/06/2019. Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais
https://www.irib.org.br/noticias/detalhes/georreferenciamento-dispensa-da-anuencia-dos-confrontantes
Publicado no IRIB