ATIVIDADE registraria, sofreu substancial mudança após o advento da Lei Federal 10.267, publicada no D.O.U em 29.08.2001, que passou a vincular à necessidade de descrição georreferencial dos imóveis rurais, ao alterar a Lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos – LRP), acrescendo os parágrafos 3º e 4º ao artigo 176, como também o artigo 225, ao incluir o parágrafo 3º.
Com o acréscimo das encimadas disposições, tornou-se obrigatória a identificação da propriedade rural a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro (SBG) e com precisão posicional fixada pelo Incra, pelo menos de início nas hipóteses de desmembramento, parcelamento e remembramento de imóveis rurais (parágrafo 3º do artigo 176 da LRP), transferência de imóvel rural (parágrafo 4º do artigo 176 da LRP) e também autos judiciais que versem sobre imóveis rurais (parágrafo 3º, do artigo 225 da LRP).
Em outras palavras, a Lei passou a exigir o LEVANTAMENTO GEODÉSICO, em substituição ao antigo plantimétrico.
A exigência de melhor fiscalização por parte do poder público em relação aos imóveis rurais é de curial importância, é sine qua non para o desenvolvimento e até mesmo soberania do Brasil. Por isso é que é louvável a intenção do legislador quando quis imprimir fidedigno controle nos imóveis rurais.
Pois não podemos nos olvidar que o fato gerador que culminou com a legisferação da Lei 10.267/01, fora a necessidade crescente de se dinamizar a questão fundiária no Brasil. É que esse imenso território, traz desde épocas primevas crônicos problemas no que tange à divisão e demarcação de terras. Há registros históricos que remota essa discussão ao Brasil Colonial, ainda sob a égide das capitanias hereditárias e mesmo vencidos séculos esses problemas subsistem em todo seu vigor.
Mas críticas se fazem à Lei que instituiu o Geo. Tanto de ordem política como jurídica.
Política , em razão da precariedade do órgão sensor do Geo. É que é incontroverso que o INCRA não dispõe de estrutura logística, e até mesmo pessoal qualificado para cumprir e certificar, em tempo razoável, os levantamentos lhe apresentados. Tal assertiva é tão verdadeira, que não sem razão começaram a chover torrenciais quantidades de ações na esfera federal cuja causa de pedir é a desproporcional e absurda demora na aprovação dos projetos. Ora, se já não bastasse os altos custos e percalços de ordem burocrática para se concluir o levantamento geodésico, o interessado ainda tem que esperar pela boa vontade do INCRA em certificar. Assim, o judiciário, a exemplo do processo de nº. 2007.36.00.009567-3/MT, que tramitou perante do TRF1, manteve a sentença ad quo que concedeu segurança ao Impetrante, no sentido de fixar prazo ao Instituto de Reforma Agrária para que concluísse a certificação no prazo de quinze dias, sob pena de multa diária.
Igual celeuma de natureza política se tem, além de enésimas outras, ao se estabelecer isenção ao proprietário de imóvel rural cujo somatória das áreas não exceda a quatro módulos fiscais, em relação aos custos financeiros, compreendido os serviços técnicos necessários à identificação do imóvel (art. 8º. do Decreto 4.449/02). Em outras palavras, para considerável quantidade de imóveis rurais do Brasil a fora, é o INCRA quem deve arcar com as despesas decorrentes do Geo. E, é claro que até o presente, não se tem notícia de nenhum feito dessa natureza!
De toda sorte, a nós interessa apenas o enfoque jurídico. Diga-se desde já que nesse quadrante, a regulamentação da Lei sempre teve interpretação conturbada, a começar por qual seria o termo inicial de obrigatoriedade da apresentação da certificação do Geo.
É bem verdade que o Decreto 4.449/02, em seu art. 10º, fixava os prazos obrigatórios de identificação levando em consideração ao tamanho da área, numa escala decrescente, as áreas maiores como menor brevidade e as menores com interregno temporal mais dilatado.
Ocorre que a Lei 10.267/01, claramente dispõe que as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro (SBG) deveriam ser fixadas pelo INCRA. Sendo que este órgão apenas se desincumbiu dessa obrigação em novembro de 2003. E, em face disso restou uma lacuna jurídica, posto que o Decreto 4.449 (que foi publicado em 30.10.2002), fixou prazos obrigatórios a partir de sua publicação, quando o INCRA sequer havia editado os parâmetros do Geo.
A título de exemplo, quem porventura fosse proprietário de imóvel rural com área igual ou superior a 5.000ha, deveria ultimar a identificação do imóvel, de acordo com o Decreto, em noventa dias, isto é, até o final de janeiro de 2003. Ocorre que a identificação era impossível haja vista o INCRA sequer ter definido os vértices geodésicos, ou seja, não havia parâmetros do sistema instituído pela Lei.
O buraco ozoniano só fora parcialmente mitigado com o advento do Decreto 5.570/05, que dilatou alguns prazos e fixou o termo inicial da contagem como sendo 20 de novembro de 2003, época em que o INCRA acabara de confeccionar a normatização técnica do Geo.
Porém, o imbróglio jurídico a cerca dos prazos não é a única crítica jurídica ao diploma georreferencial. Asseveramos questão mais relevante, que fulmina até mesmo com a legalidade da própria exigência da certificação.
Já pontuado alhures, a Lei 10.267/01, inicialmente foi regulamentada pelo Decreto nº 4.449/02, de 30 de outubro de 2004 e posteriormente sucedido pelo 5.570/2005, que no particular ao Geo, fixou os prazos obrigatórios, a partir dos quais a matrícula do imóvel ficaria inalterada até a realização do levantamento geodésico, só que o primeiro Decreto inovou ao incumbir ao INCRA o ônus de certificar se a área georreferenciada não se sobrepõe a nenhuma outra constante de seu cadastro e que o memorial atende às exigências técnicas, conforme ato normativo próprio.
É importante frisar que certificação difere substancialmente do levantamento geodésico. Enquanto este consiste obrigatoriedade da descrição do imóvel rural, em seus limites, características e confrontações, através de memorial descritivo firmado por profissional habilitado, com a devida ART, “contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA” (art. 176, § 4º, da Lei 6.015/75, com redação dada pela Lei 10.267/01) e aquela é “chancela” do INCRA no sentido de verificar se o trabalho de campo atende às exigências técnicas.
Assim para transferência, desmembramento, parcelamento e remembramento, os Serviços Registrais devem exigir tão somente memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro (SBG) e com precisão posicional fixada pelo INCRA, prescindindo da certificação deste.
Entendendo melhor. A Lei 10.267/01, ao alterar os artigos 176 e 225, da LRP, acrescendo respectivamente os parágrafos 3º, 4º e 3º, notadamente o parágrafo 3º do primeiro artigo, exigiu apenas memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com ART, com as coordenadas fixadas pelo INCRA.
Ora, resta evidente que em momento algum a Lei determina que os memoriais descritivos, firmados por profissionais e com ART’s deveriam ser certificados. Pelo contrário, a Lei limitou-se a dizer que as coordenadas seriam fixadas pelo INCRA, não que ele deveria aprovar (certificar) os memoriais.
Com efeito, o INCRA editou a Norma Técnica que trata esses dispositivos, em 17.11.2003, devendo assim todo o trabalho de levantamento ser norteado pelas disposições técnicas inserta nessa norma, cumprindo assim o comando da Lei. O acréscimo da obrigatoriedade da certificação fica a cargo do Decreto 4.449/02, que como é cediço, não pode se sobrepor à lei.
Correndo o risco de ser repetitivo, lembramos que é remansoso o entendimento que o perfeito enquadramento no ordenamento jurídico de um Decreto, só se dará se este instrumento normativo ater-se em regulamentar os artigos que dizem respeito à norma regulamentada. Isto é, defeso ao Decreto inovar, trazer ao mundo jurídico qualquer novidade. O Decreto é regulamento e não pode extrapolar as prescrições legais. Assim, indubitavelmente pode-se dizer que expediente desta natureza não é o espaço normativo adequado para se exigir a certificação.
Se fosse vontade do Legislador que os memoriais descritivos fosse submetidos à certificação do INCRA deveria ter produzido norma formal (lei no sentido strito), como fez ao exigir ao Geo, não através de Decreto.
O Decreto 4.449/02, não só exige a certificação, como também prescreve severa restrição de duvidosa constitucionalidade. É que o seu § 2º do art. 10º, dispõe que após transcorrido os prazos no caput elencados, o imóvel não poderá ser desmembrado, nem parcelado ou remembrado, como também não poderá ser transferido, isto é, em nada poderá ser alterado no registro imobiliário.
É demais aceitar que a fruição do direito de propriedade seja mitigado por decreto regulamentador. Foi infeliz o legislador, atentando contra o inciso XXII do art. 5º, que consagra um dos mais importante pilares da atual Constituição Cidadã, qual seja, direito à propriedade.
É verdade que o direito à propriedade embora seja de natureza constitucional, como qualquer direito, em razão do principio da proporcionalidade e razoabilidade, comporta restrições, assim é plenamente possível estabelecer sanções caso a norma não seja observada, como nos casos de limitações administrativas, desapropriação sancionatária (propriedade destinada a entorpecentes), dentre outras. Agora, é mais verdade ainda que, é defeso em nosso ordenamento, a possibilidade de se restringir tal direito apenas por decreto. Ora, se a Lei 10.267/02 não restringiu, não cabe o Decreto 4.449/02 assim fazê-lo. O Decreto assim procedente (restringindo) padece de inconstitucionalidade.
Lembrando pela derradeira fez, a Lei 10.267/02 apenas migrou do sistema de medição anterior – do plantimétrico – para o geodésico. Sendo que o Decreto deveria trazer apenas os contornos regulamentares e não criar obrigações e disposições a par das constantes na lei.
Em argumento contrário, poderia se dizer que de nada valeria o levantamento geodésico sem a certificação pelo INCRA. Com esse entendimento não podemos concordar pelos seguintes motivos.
Primeiro porque o sistema anterior plantimétrico nunca fora o principal fator catalisador da odiosa situação fundiária no País. Mas sim a inexistência de políticas públicas nesse viés e falta de estrita cooperação entre a União e os Estados, para que não ocorresse, por exemplo, a sobreposição de áreas. Problemas como esse jamais serão resolvidos pela certificação, mas apenas se houver unicidade de esforço para se ultimar levantamento global e delimitar as propriedades individualmente.
Segundo, a certificação não traz certeza de propriedade nem mesmo perante o INCRA. É que o §2º do art. 9, do Decreto 4.449/02 pontua que a certificação do memorial descritivo pelo INCRA não implicará reconhecimento do domínio ou a exatidão dos limites e confrontações indicados pelo proprietário. Ora, se depois de se gastar exageros, superar entraves burocráticos, colher assinaturas de confrontantes, etc…, ainda não sem tem pelo menos a presunção de exatidão dos limites, se pergunta: qual então é a necessidade da certificação?
Isto posto, das exposições acima, fica latente que a legislação até exige o levantamento com base no Sistema Brasileiro Geodésico, mas não condiciona a sua validade a certificação pelo INCRA, tão somente, requer que seja realizado por profissional habilitado que assine Nota de Responsabilidade Técnica. Nesse caso, a interpretação dada a norma, deve ser restritiva, eis que tem ensejo o princípio da reserva legal, em toda a sua essência, profundidade e extensão (art. 5º, II, da Constituição Federal).
Publicado do Diário das Leis. BDI nº 23 – ano: 2009